InVersos: Joana Branco – Dias de luar e chuva miudinha…


Em cada esquina. Em cada esplanada de café. Em cada banquinho de jardim. Há fantasmas que não me largam. Coimbra está cheia deles. Deixam perfumes no ar, imundos de nostalgia. E eu acho sempre que um perfume triste não perfuma ninguém. Dois amantes debaixo da chuva miudinha, molha-tolos. Mas eles não o são, pensam eles. Querem lá saber das gripes. Ficam especados a meio da Visconde da Luz, debaixo de uma verdadeira torrente de água, enquanto gente sem chapéu quase os atropela, ao correrem para se abrigar debaixo de um toldo qualquer.
Eles querem lá saber que aquela gente depois os olhe com reprovação. Que os critique. Que os goze. Inveja, é o que é. Eles sabem bem disso. Dou um passo largo e acelero a marcha.
Naquela Praça, nem vivalma. Olho para a fachada do Sereia e não quero pensar que ali se escondem mil segredos. Numa esquina mais acima lê-se We wish you a good trip. A mim não, de certeza. As minhas viagens são sempre conturbadíssimas. A lua já não é o que era.
Cansei-me da Alta. Apanhei o que restava de um trolley e meti-me de novo entre as gentes. A meu lado, numa sala pequena qual alpendre para o rio, alguém fazia desenhos de café. Intimistas, como convém. Que inveja tenho eu dos pintores. Um pintor não deve nada a ninguém. Olha a tela como uma coisa infinitamente sua, ou lhe tem uma paixão doentia, ou um desprezo de morte. É uma amada, uma amante. Num puro jogo de sedução e, no final, ele reclama-a, chama-lhe “dele”. Põe-lhe o seu nome, para que toda a gente saiba que ela lhe pertence para além da eternidade.
Penso que a vida devia ser toda assim. Reclamarmos as coisas que são nossas por direito. Que inveja tenho eu dos pintores! Cheguei à conclusão que precisava urgentemente de um pintor. Que me ensinasse os caminhos a seguir para materializar esta minha tela.
Explode-me no pensamento. Massacra-me, a maldita. Não há maneira de me saíres da cabeça.
Corpos com caras desfiguradas sentados no tal café. Quatro mãos presas em cima de uma mesa. É triste, triste quando alguém não nos sabe prender. E não me venham com essa denguice que não se dever prender ninguém. Quando se gosta, há sempre uma prisão de alma que devia ser perpétua. Pena capital. Sem juiz. Belíssima tortura. E um pintor quer sempre. Que inveja tenho eu dos pintores.
Há amantes que vão dizendo que morrem de amores. Pode-se até morrer de amores, mas sei que o amor morre connosco.
É na boca de outras que os amantes nos beijam. Sufocam-nas de ímpeto. E nós a vé-los. A vê-las. Em sonhos. Morde-se o lábio até escorrer sangue e espera-se o fim, aos bocadinhos, que é como ele chega. Depois os amantes tiram-se das listas telefónicas, dos telemóveís, dos filo-faxes e já se pensa que saíram das nossas vidas de vez.
Muda-se de pessoa. E de vida. Eu andei tempos infindos apavorada no meio das ruas com medo de não esquecer. Com medo de tudo o resto. É na boca de outros que beijamos os amantes.

Joana Branco