InVersos: Almeida Garrett – O Natal em Londres

Que Natal este! – sempre sois herejes,
Meus amigos Ingleses.
Bem haja o Santo Padre, e as suas bulas
De fulminante anátema,
Que excomungou estes ilhéus descridos:
Oh! nunca a mão lhe doa
– Ver na minha católica Lisboa
As festas de tal noite!
Sinos a repicar, moças aos bandos
Com a bem trajada capa,
E o alvo teso lenço em coca airosa,
Donde um par de olhos negros
Dão as boas festas ao vivaz desejo
Do tafulo devoto
Que embuçado acudiu no seu capote
À pactuada igreja!
Natal da minha terra, que lembranças
Saudosas e devotas
Tenho de tuas festas tão gulosas
E de teus dias santos
Tão folgados e alegres! Como vinhas
Nos frios de dezembro
De regalados fartes coroado
Aquecer corpo e alma
Com o vinho quente, com os mexidos ovos,
E farta comezana!
E estes excomungados protestantes,
(Olhem que bruta gente)
Sempre casmurros, sempre enregelados
Bebendo no seu ale,
E tasquinhando na carnal montanha
Do beef cru e insípido!
Pois os Christmas-pyes, gabado esmero
De sarmatas manjares!…
Olhem estas pequenas: são bonitas;
Mas que importa que o sejam
Se das Graças donosas praguejadas,
Rústicas e selvagens,
Nem dança airosa, nem alegre jogo
De divertidas prendas
Arranjar sabem, e passar o tempo
Em honesto folguedo.
Jogar um Whist morno e taciturno,
Sentar-se em mona roda
Junto ao fogão, fazer um detestável
Chá preto e fedorento,
Sem ar, sem graça… – Oh madre natureza,
Quanto mal empregaste
A formosura, o mimo, as lindas cores
Que a tais estátuas deste!

Almeida Garrett

Lido e produzido por Rui Diniz

Música: Alan Marchand – “Cuchi Fedex Man”
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InVersos: Almeida Garrett – Olhos Negros


Por teus olhos negros, negros,
Trago eu negro o coração,
De tanto pedir-lhe amores…
E eles a dizer que não.

E mais não quero outros olhos,
Negros, negros como são;
Que os azuis dão muita esp’rança
Mas fiar-me eu neles, não.

Só negros, negros os quero;
Que, em lhes chegando a paixão,
Se um dia disserem sim…
Nunca mais dizem que não.

Almeida Garrett

Lido e produzido por Rui Diniz

Música: Daniel Estrem – “Largo from Trio Sonata TWV 42 E7” (Telemann)
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InVersos: Almeida Garrett – A Délia

Cuidas tu que a rosa chora,
Que é tamanha a sua dor,
Quando, já passada a aurora,
O Sol, ardente de amor,
Com seus beijos a devora?
– Feche virgíneo pudor
O que inda é botão agora
E amanhã há-de ser flor;
Mas ela é rosa nesta hora,
Rosa no aroma e na cor.

– Para amanhã o prazer
Deixe o que amanhã viver.
Hoje, Délia, é nossa a vida;
Amanhã… o que há-de ser?
A hora de amor perdida
Quem sabe se há-de volver?
Não desperdices, querida,
A duvidar e a sofrer
O que é mal gasto da vida
Quando o não gasta o prazer.

Almeida Garrett

Lido e produzido por Rui Diniz

Música: Daniel Estrem – “Once Upon A Time – Lyric Pieces Op71 No1” (Edvard Grieg)
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InVersos: Anjo És – Almeida Garrett

InVersos: Almeida Garrett – Anjo És from Rui Diniz on Vimeo.

 

Anjo és tu, que esse poder
Jamais o teve mulher,
Jamais o há-de ter em mim.
Anjo és, que me domina
Teu ser o meu ser sem fim;
Minha razão insolente
Ao teu capricho se inclina,
E minha alma forte, ardente,
Que nenhum jugo respeita,
Covardemente sujeita
Anda humilde a teu poder.
Anjo és tu, não és mulher.

Anjo és. Mas que anjo és tu?
Em tua fronte anuviada
Não vejo a c’roa nevada
Das alvas rosas do céu.
Em teu seio ardente e nu
Não vejo ondear o véu
Com que o sôfrego pudor
Vela os mistérios d’amor.
Teus olhos têm negra a cor,
Cor de noite sem estrela;
A chama é vivaz e é bela,
Mas luz não têm. – Que anjo és tu?
Em nome de quem vieste?
Paz ou guerra me trouxeste
De Jeová ou Belzebu?

Não respondes – e em teus braços
Com frenéticos abraços
Me tens apertado, estreito!…
Isto que me cai no peito
Que foi?… – Lágrima? – Escaldou-me…
Queima, abrasa, ulcera… Dou-me,
Dou-me a ti, anjo maldito,
Que este ardor que me devora
É já fogo de precito,
Fogo eterno, que em má hora
Trouxeste de lá… De donde?
Em que mistérios se esconde
Teu fatal, estranho ser!
Anjo és tu ou és mulher?

Almeida Garrett