InVersos: Mário Quintana – O poema


Um poema como um gole d’água bebido no escuro.
Como um pobre animal palpitando ferido.
Como pequenina moeda de prata perdida para sempre na floresta noturna.
Um poema sem outra angústia que a sua misteriosa condição de poema.
Triste.
Solitário.
Único.
Ferido de mortal beleza.

Mário Quintana

InVersos: Piedade Araújo Sol – Do amor impossível


Ferido o meu coração que sangra e
Dói cada vez mais
Das cinzas renasce a dor
Numa melancolia atroz
Antevendo uma renúncia
No auge duma paixão
De sentimentos inegáveis
Onde só existe contradição

Queria ter sonhos para te dar
Mas só tenho a minha dor
Que não sara a ferida
Que teima em não querer cicatrizar
E a mágoa escorre em gotículas
Onde as lágrimas não tem lugar
Nas manhãs do imaginário
Houve um sonho que não se chegou a realizar

Nosso corpos nunca se tiveram
Nossas bocas nunca se beijaram
Nossas mãos nunca se entrelaçaram
E no entanto sinto falta do teu corpo
Dos teus lábios sobre os meus
Do toque da tua mão
Das palavras sussurradas
No momento da paixão

Não se pode perder
Aquilo que não se tem
E eu sem saber o quê
Sei que perdi
No meu castigo busco o sofrimento
Esperando o perdão para expiar
Um pecado que não cometi

Foste embora e que te importa
Se deixaste meus sonhos
Espalhados pelo chão
Se nas prateleiras do meu medo
A poeira transparece
Por entre os raios de luz
Que a janela da minha solidão
Teima em deixar penetrar

Que te importa se a noite cai
E os fantasmas chegam
Para me povoar o sono
Transformado em pesadelos
Que te importa se terei que aprender
A ser feliz
Ainda que tudo seja falso, triste e onde
Nunca houve lugar para nós
Que nunca fomos nós

Piedade Araújo Sol

InVersos: Al Berto – Acordar tarde


tocas as flores murchas que alguém te ofereceu
quando o rio parou de correr e a noite
foi tão luminosa quanto a mota que falhou
a curva – e o serviço postal não funcionou
no dia seguinte

procuras ávido aquilo que o mar não devorou
e passas a língua na cola dos selos lambidos
por assassinos – e a tua mão segurando a faca
cujo gume possui a fatalidade do sangue contaminado
dos amantes ocasionais – nada a fazer

irás sozinho vida dentro
os braços estendidos como se entrasses na água
o corpo num arco de pedra tenso simulando
a casa
onde me abrigo do mortal brilho do meio-dia

Al Berto