InVersos: Ricardo Silveirinha – O meu querido Chico Silveirinha


Poucos dias antes de morrer, o meu avô, já um esqueleto de pijama, pediu-me para ir à janela do corredor. Já não comia, pouco bebia, a vida já lhe era uma saudade qualquer que ainda lembrava porque é o coração o último soldado a morrer. Nas trincheiras do Hospital, seguimos, passo a passo, devagarinho, ele encostado a mim, eu encostado a ele, os ramos nus dos braços como árvores de Outono e a pele ou branca ou amarela, mas ainda capazes de fazer sentir o sangue, um último sangue que lá dentro pulsava.

Eram talvez dez da noite e as horas não interessavam. Abri a janela, no nariz alentejano do meu avô passou uma brisa, um cheiro a luzes e a Lua. Cheirava a estrelas. Os olhos incendiados de despedida. O meu corpo a abraçá-lo como se eu é que fosse o avô do meu avô. Era noite, a vida estava quase a fechar, e os seus olhos abertos para a última imagem: um céu cheio de pirilampos. Apertou-me o braço, sorriu-me, olhou-me com olhos de criança e eu levei-o à cama para o aconchegar no sono dos sonhos dos sonhos do sono.

Se a vida fosse perfeita como nos maus filmes, então eu teria posto o Carlos do Carmo, que era um amor do meu avô e que também é um amor meu por causa do meu avô. Na sala a respirar o odor da terra do caminho que vai da vida para a morte, em loop o final da «Madrugada»:

«Mas quase, ao romper da aurora, há uma guitarra que chora: saudades da minha vida.»

Ricardo Silveirinha

Lido e produzido por Rui Diniz

Música:
Carlos do Carmo – “Madrugada”

Fado de Alfredo Marceneiro e Fernando Pinto do Amaral

3 thoughts on “InVersos: Ricardo Silveirinha – O meu querido Chico Silveirinha

  1. brilhante o texto e a voz do Rui Diniz …

    Liked by 1 person

  2. Nair Vieira Rezende diz:

    Emocionante!

    Liked by 1 person

  3. Variando,o tipo de texto uma mais valia. Neste caso,ótima escolha. Depois o engenho e arte de que sabe vestir as palavras! Parabéns InVersos

    Liked by 1 person

Deixe um comentário